Quando criança, eu tinha muita dificuldade de dormir. Como consequência, meus pais ficavam muitas vezes comigo até eu pegar sono. Meu pai era mais prático, virava e dormia, dividindo a cama comigo. Às vezes eu, ainda acordada, acordava ele para que ele me fizesse companhia enquanto eu ainda não conseguia dormir. (Não é surpresa também que quem ficava mais comigo era minha mãe).
Minha mãe me ninava, conversava comigo, inventava músicas. Numa dessas noites que para mim eram comuns, enquanto eu falava pelos cotovelos e minha mãe apenas ouvia imóvel, ela me interrompe e diz:
– Filha, você é muito egocêntrica.
– O que é isso?
E ela respondeu, no mesmo tom de voz:
– Amanhã você pesquisa.
E virou e dormiu.
Não sei dizer se ela já me conhecia o suficiente para saber que querer saber o significado de uma palavra ia me deixar intrigada e quieta e usou disso para poder finalmente dormir; ou se ela sutilmente já me adiantou a pauta da sessão de terapia de 20 anos depois.
***
Eu comecei a aprender inglês muito nova. Meu irmão, que já era mais velho, tinha iniciado às aulas no curso a parte e, eu, com meus 7 anos, fui matriculada na mesma escola.
Para o meu irmão o inglês era interessante e expansivo. Ele aprendia em sala de aula e aplicava nos jogos, nas séries, nas músicas, nos livros. Para mim, era um tédio. A cada dia que eu aprendia uma palavra nova eu ficava pensando onde eu poderia usá-la e quem entenderia o que eu estava dizendo. Não à toa, as professoras de inglês do curso e da escola vespertina eram sempre perturbadas pelas minhas perguntas sem objetivo como “do you like tea?” e depois de “yes, I do” meu vocabulário acabava e eu tinha que ficar grata de poder usar “tea” em algum ponto da vida.
Como o curso era perto de casa, minha mãe me buscava a pé. Num desses dias, enquanto voltávamos para casa, nos deparamos com uma concessionária que lia na placa “NEW CAR”. Eu, tentando mostrar o que aprendi, prontamente virei para a minha mãe e disse:
– Mãe, você sabe o que significa “new car”?
Ela olhou para frente, olhou para mim, riu e disse, apontando:
– Sim, ali!
O semáforo abriu, minha mãe foi andando na frente, rindo, feliz da vida.
Eu fiquei pra trás e tentei explicar “eu disse ‘significa’ não ‘onde fica’ “, enquanto batia os pés e ficava emburrada.
E ela só seguiu, rindo, satisfeita
– Hahaha, você tentou me enganar, mas sua mãe é esperta também! Não caio nessa não.
Depois de passos rápidos supervisionados eu alcancei sua mão e até tentei explicar de novo, mas eu perdi, inevitavelmente de bom grado, aquela batalha.
***
Desde sempre sofri de dores de cabeça intensas. Não era qualquer remédio que aliviada a sensação de pressão e queima na têmpora e, mesmo aquele que aliviava, tinha um efeito demorado que ainda deixava resquícios de dor pelas horas seguintes. Quando criança, era especialmente difícil lidar com as dores e ainda esperar que o remédio fizesse efeito.
Numa quarta-feira meio fria, quando eu tinha 14 anos, durante a aula de matemática, uma dessas dores surgiu rápida e pungente. Na época, apesar de ser proibido, eu entrava com o celular na sala de aula. Então, discretamente – ou pelo menos acreditava eu – segurei o aparelho debaixo da carteira e digitei, sucinta e objetiva: “mãe, estou com dor de cabeça, trás o remédio pra mim, por favor?”
Alguns minutos se passaram enquanto eu esperava ansiosa a resposta da minha mãe.
Perto daquela aula acabar, o celular vibra:
“ ‘Traz’ do verbo ‘trazer’ é com ‘z’ “
Eu só soube que ela tinha de fato levar o remédio uma hora depois, durante o intervalo, graças ao aviso de uma monitora.
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